quarta-feira, 10 de setembro de 2014

MAGNIFITICAT E O BENEDICTUS


Uma Análise dos Cânticos nos Evangelhos – O Magnificat e o Benedictus


Tem havido uma ênfase muito grande no Antigo Testamento, em nossas igrejas. Esta ênfase se verifica inclusive nas pregações e nos cânticos. Isto não é mau, em si. O autor deste trabalho é professor de Antigo Testamento e disciplinas correlatas, e autor de vários comentários exegéticos de livros do Antigo Testamento e se sente bem nesta porção da Bíblia. O problema é que alguns parecem esquecer que somos cristãos, somos regidos pelo Novo Testamento, que interpreta o Antigo, que somos filhos de nova aliança, prometida em Jeremias 31.31 e concretizada na instituição da ceia do Senhor, como lemos em Lucas 22.20. Muitas práticas e posições têm sido estabelecidas sem o parâmetro do Novo Testamento. Inclusive na área do louvor e de adoração. Isto se torna problemático para a igreja. Cristo tem sido empurrado para a periferia em muitas pregações e em muitas celebrações de louvor. E, em algumas ocasiões em que é lembrado, mais se assemelha a um Cristo da nova era, uma força ou uma energia, um emblema de uma espiritualidade vaga, do que a pessoa histórica em que Deus se encarnou e esteve entre nós.
Somos filhos de Novo Testamento, cuja teologia deve nos reger. Por isto que examinar seu ensino teológico sobre o conteúdo do louvor nos fará bem. Há hinos no Apocalipse, nas epístolas de Paulo e de Pedro, bem como nos evangelhos. Fiquemos por hora com dois dos cânticos mais conhecidos do Novo Testamento, e encontrados, ambos, no evangelho de Lucas. Um é o cântico de Maria (Lc 1.47-55), chamado de Magnificat, e o outro é o cântico de Zacarias (Lc 1.68-79), chamado de Benedictus. Como é a teologia deles? Que sinalizam para os cânticos contemporâneos, em termos de conteúdo?

Uma Pista Já Nos Títulos

O cântico de Maria é chamado de Magnificat por causa da primeira palavra em sua redação latina. “A minha alma engrandece ao Senhor” (Lc 1.46), diz-nos o texto em português. Mas magnificat é a expressão latina para “engrandece”. É um cântico que exalta a grandeza de Deus, colocando o adorador como quem reconhece e exalta esta magnificência divina. A ênfase está na grandeza do Senhor. Nada de novo, pois o Salmo 139 é uma exultação plena sobre a majestade divina em vários aspectos. Mas guarde-se isto: a ênfase não está no adorador, mas na grandeza divina. A grandeza de Deus é o motivo central do cântico. Os cânticos são para engrandecer a Deus, e não para nos sentirmos bem, embora engrandecer a Deus não nos faça mal. Mas o foco deve ser Deus. Outros aspectos são secundários.
O cântico de Zacarias é chamado de Benedictus por causa da expressão latina para “Bendito”, que é a primeira palavra do cântico (Lc 1.68). Ele segue uma estrutura comum nos cânticos de Israel. O cântico bendiz a Deus pelo agir divino no presente, que é a visitação divina na pessoa do menino, mas olha para o futuro, conforme se observa nos versículos 76-79. O cântico de Maria louva a Deus por aquilo que ele é. O cântico de Zacarias louva a Deus pelos seus atos na história, tanto no passado como no futuro. A ação de Deus na história é o motivo central do cântico do pai do Batista.
Os dois motivos centrais no dois cânticos são estes: Deus deve ser louvado pelo seu ser e pela sua obra. Pelo que é, pelo que fez e pelo que fará. Devemos adorar a Deus pelo seu caráter e por suas obras. Isto não traz nada de novo e todos concordaremos com isto, mas caminhemos mais um pouco em nossas observações
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Um Pouco do Conteúdo do Magnificat

Uma análise exaustiva do cântico de Maria nos tomaria muito espaço. Nosso propósito é uma visão geral que delineie o conteúdo do primeiro cântico de louvor a Deus no evangelho. Assim procedemos.
Começando pela exaltação do ser de Deus, o cântico logo nos desvela o sentimento da adoradora. “A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito exulta em Deus meu Salvador” (vv. 46-47). Onde temos “engrandece”, o correspondente em hebraico seria “Proclama as grandezas”. “Minha alma” não deve ser entendida como a parte espiritual da pessoa, mas tem o sentido de todo o ser de Maria. Não é um ato mecânico, mas algo profundo, com todo o seu ser. O cântico traz o sentido de uma pessoa totalmente absorta em Deus, derramada diante dele, agradecida. O primeiro cântico de louvor do Novo Testamento nos mostra o sentimento do adorador. Não é uma catarse nem entretenimento, mas um profundo reconhecimento de quem é Deus e do se está fazendo. É um momento de contrição. A verdadeira adoração parte de um coração rendido e absorto em Deus. Não há estrelismo humano, mas uma glorificação de Deus.
Sem qualquer preocupação de desconstruir a figura de Maria, ressaltemos a expressão “atentou na condição humilde de sua serva” (v. 48). Não é um cântico de superioridade, mas de claro reconhecimento de sua humildade. O que Maria recebeu do Poderoso foi por causa de sua graça. Ele “atentou”. O mérito é dele. É óbvio que nossos cânticos devem expressar nossa fé e nossos sentimentos, mas devem deixar claro que tudo que recebemos de Deus é por bondade sua e não mérito humano. Não reivindicamos nem declaramos, mas dizemos ter recebido manifestações da bondade divina. Nossos cânticos não devem exaltar o humano, mas sim o divino. Muitos “momentos de louvor” em nossas igrejas mostram que as pessoas estão usurpando o lugar de Deus no culto. Ou querendo aparecer mais que ele ou, ainda, tentando manipular as pessoas, produzindo-lhes emoções. Produzir emoções na vida do adorador é obra do Espírito Santo. E o evangelho de Jesus é tão poderoso que não precisa que pessoas sejam manipuladas para ele produzir efeitos. Basta centrar o foco em Deus. Ele faz o resto.
De uma perspectiva pessoal, o cântico se desloca. De Maria, passa a falar do próximo. Fala dos que temem a Deus (v. 50), e diz que ele agiu contra os soberbos e poderosos (vv. 51-52), elevou os humildes (v. 52), cuidou dos famintos e puniu os ricos (v. 53). Saiu da esfera do “eu” para a esfera do “eles”. Um cântico que não olha apenas para si, mas inclui os demais. Louvamos a Deus pela sua bondade para conosco, mas devemos reconhecer sua bondade para com os demais. O culto não é apenas “eu e Deus”. É “eu, Deus e os outros”. Embora Maria parta de sua experiência muito particular, sua gravidez pelo Espírito Santo, seu louvor inclui os demais. Evitemos o intimismo e um tipo de culto que se restrinja a nós. Mesmo no momento mais pessoal de nosso louvor devemos lembrar que Deus é misericordioso para com todos os fiéis e carentes. Cânticos e culto não podem resvalar para o intimismo. Há uma mensagem para todos e não apenas para o adorador em particular. Em nossa gratidão lembremos dos irmãos. Deus não é propriedade um adorador em particular, mas é o Senhor de todos os que crêem em Jesus.
Mais uma vez o cântico se desloca. Sai do próximo para o povo na sua totalidade: “auxiliou a Israel” (v. 54). É lamentável que tantos cânticos e tantos cultos sejam excludentes de faixas etárias. “Culto jovem”, por exemplo, enfatiza o adorador, não Deus, e restringe o culto a uma faixa etária. Faz triunfar o aspecto cultural sobre o aspecto teológico. O culto é um pecúlio espiritual de todo o povo de Deus, dirige-se a todo o povo de Deus, e em sua dimensão horizontal fala de todo o povo. Maria entoa um cântico que sai de sua pessoa, de sua gratidão pessoal para o reconhecimento da bondade de Deus para com todos. Um cântico que vê a totalidade do povo de Deus e não apenas os sentimentos da adoradora. Oportuna lembrança para nós! O culto público, principalmente, não pode primar pelo privatismo e pelo exclusivismo. O individualismo de um mundo sem Deus tem marcado até mesmo alguns de nossos cânticos, em que parecem existir apenas duas pessoas, o cantante e Deus. O culto é dos demais irmãos, repartimos as bênçãos com eles, e nos alegramos com eles.

Um Pouco do Conteúdo do Benedictus

O Benedictus é introduzido pela declaração de que Zacarias “ficou cheio do Espírito Santo, e profetizou” (v. 67). Vem com a força de ser uma declaração inspirada por Deus. Só por isto merece nossa especial atenção. “Bendito” (Benedictus) é o grego eulógetos, o mesmo termo que introduz o hino trinitariano de Efésios 1.3-14. Só é usado para Deus. Geralmente o termo está sempre celebrando um benefício especial que Deus concedeu a alguém. É um cântico que celebra uma bênção recebida.
A bênção é comunitária. Zacarias entende quem é o menino e louva a Deus pelo seu significado na história de Israel. O centro teológico do cântico é o versículo 72: “Para usar de misericórdia com nossos pais, e lembrar-se do seu santo pacto”. Esta idéia de misericórdia, que é central, se repete no versículo 78: “graças à entranhável misericórdia…”. As idéias principais, além da misericórdia, o hesed (amor imutável e eterno, o amor do pacto), são: salvação, liberdade, justiça e serviço. O cântico de Zacarias tem um profundo senso de história da salvação, o que é notável, sendo tão curto. A salvação não é um evento esotérico nem subjetivo. Está enraizada na história. E o Deus da história age movido pela sua misericórdia. Nossos cânticos não podem perder a historicidade da fé cristã de vista. E esta fé cristã não pode ser reduzida a meras sensações, como alguns de nossos cânticos têm feito. Isto é um empobrecimento de nosso credo.
A ação de Deus Pai na história desemboca no menino (v. 76 – “E tu, menino…”). É um hino cristológico. Isto se reveste de grande valor para nós. Cristo tem sido esquecido em muitos dos cânticos atuais. Somos cristãos e nosso louvor deve ser cristológico. A igreja celebra a Cristo e deve mostrar isto em seus cânticos. Precisamos cantar Cristo e a misericórdia do Pai. Porque Cristo é a maior manifestação da misericórdia do Pai. Podemos notar, sem muito esforço, que o cântico de Zacarias apresenta, na parte que trata do Pai, três divisões, no modelo de um sermão clássico: 1) Deus intervém (vv. 68-69); 2) Deus cumpre o prometido (v. 70); 3) Deus salva (vv. 71-74). A seguir, ocupa-se do menino, em quem Deus interveio, cumpriu o prometido e salva. Não é demais enfatizar isto: o cântico tem uma culminância na pessoa de Jesus. Cuidado para com nosso louvor nunca nos esquecermos de Jesus. E ele não pode ser uma vaga referência, mas o ponto culminante de nosso culto. Precisamos colocar Cristo no centro do púlpito e no centro do que cantamos.

À Guisa de Conclusão – A Visitação de Deus

Maria foi visitada pelo Senhor, através de seu anjo (Lc 1.26). Em seu cântico mencionou esta visitação (Lc 1.49). A idéia é expressa de maneira mais acentuada por Zacarias, em Lucas 1.68: “visitou e remiu o seu povo” e “nos há de visitar a aurora lá do alto” (Lc 1.79). A idéia de uma visitação de Deus está associada a sua entrada na história e na experiência dos homens, para libertá-los (Gn 50.24 e 26, Rt 1.6). Os dois primeiros cânticos de louvor do Novo Testamento celebram a visitação de Deus. Isto deve estar presente em nossos cânticos e cultos. Nós cantamos a visitação divina. Nós cantamos a entrada de Deus na história. Nós cantamos uma fé que se enraíza na história e cuja objetividade histórica é reconhecida. Não a reduzamos a sensações e ao sentimentalismo. O nascimento virginal, o ministério de Jesus, a cruz, a ressurreição, a ascensão, todos eles são temas históricos que devem ser cantados. Os corinhos atuais (ou qualquer que seja a nomenclatura que lhes dêem) se centram mais em sentimentos do adorador e apregoam uma religiosidade vaga, a-histórica. Isto não é a fé cristã. Nosso Deus age na história. Nós cantamos a entrada de Deus na história e o fato de que ele dirige a história.
No paganismo grego, as pseudas-divindades entravam na história para se divertir e afligir os homens. No cristianismo, Deus entrou na história para salvar os homens, para dar-lhes esperança e um sentido para suas vidas. Nossos cânticos e nossos cultos devem celebrar a esperança que Jesus nos trouxe. Devem expressar nossa salvação por causa da obra de Cristo, devem celebrar o rumo de vida que a igreja tem, devem proclamar nossa esperança. Somos o povo que Deus visitou e tomou para si, e devemos celebrar isto em nossa adoração.

Com tudo isto, podemos afirmar convictamente: o culto não é uma catarse para externar emoções, nem é um momento de entretenimento espiritual para nos sentirmos bem. Cânticos e cultos devem celebrar os atos de Deus por nós e expressar nossa gratidão pela sua obra por nossas vidas. E o referencial que nunca pode ser perdido é isto: cânticos e cultos da igreja devem ser cristológicos, exaltando a pessoa de Jesus Cristo, chamando a atenção para ele, exaltando sua pessoa e seu significado na história e na nossa vida. Se perdermos Cristo de vista, nosso culto será tudo, menos culto cristão. Maria e Zacarias nos ajudam a compreender isto um pouco mais.
fonte musicaeadoração.com.br

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