quinta-feira, 11 de setembro de 2014

CORAIS DE BACH

     

    Os corais luteranos na obra de Bach

Uma das práticas mais incentivadas por Martinho Lutero (1483-1546) na Reforma Protestante foi a criação (ou tradução e adaptação) de melodias corais para os cultos luteranos. Lutero era músico e fã de Josquin Desprez, e ele mesmo criou alguns corais que são cantados até hoje nos cultos mundo afora.
Mas quando a melodia precisa ser acompanhada por um instrumento, como o órgão, ou cantada por um coro a quatro vozes, só a melodia não é suficiente: é necessário adicionar um acompanhamento (acordes) à melodia, num processo conhecido como “harmonização de coral”. Isto ficava a cargo dos músicos executantes ou do kapellmeister do local, e era algo comum e trivial na Alemanha da era barroca. Dentre os compositores que se destacaram nesse ofício está o nosso velho conhecido Johann Sebastian Bach: veja o que ele fez, por exemplo, com a bela melodia An Wasserflüssen Babylon do organista Wolfgang Dachstein (1487-1553) – ouça primeiro a melodia coral, depois a harmonização de Bach, BWV 267 (apenas as frases iniciais de ambas):
No catálogo de obras de Bach (Bach-Werke-Verzeichnis em alemão, também conhecido por BWV), as obras numeradas de 250 a 438 são todas corais harmonizados a 4 vozes. A esse montante acrescente mais os corais presentes em cantatas, oratórios e paixões, e você terá uma imensa coleção de harmonizações diferentes, às vezes até para a mesma melodia coral. Ouça a frase inicial de Ach Gott, vom Himmel sieh’ darein, melodia de Martinho Lutero, e depois repare como são diferentes as harmonizações dos corais que encerram as cantatas Ach Gott, vom Himmel sieh darein BWV 2 e Du sollt Gott, deinen Herren, liebenBWV 77 de Bach:
Vale a pena observar que, entre a época de criação das melodias corais (século XVI) e a época de Bach (século XVIII) muita coisa mudou na harmonia e teoria musical, o que gerou alguns conflitos interessantes. Por exemplo, para corais de arrependimento e penitência Lutero preferia o modo frígio, mas durante o barroco a música modal já havia cedido espaço para a música tonal (maior e menor). E aí vemos Bach dando tratos à imaginação para harmonizar o exemplo anterior, Ach Gott, vom Himmel sieh’ darein, que é em modo frígio assim como Aus tiefer Not schrei ich zu dir, harmonizado na cantata de mesmo nome BWV 38:
Na época de Lutero não havia a “exigência” de que a música começasse e terminasse no mesmo tom (aliás, ainda nem existia o “conceito” de tonalidade). É por isso que Christ lag in Todes Banden de Lutero inicia claramente em Si menor e termina em Mi menor, mas isso é algo com que Bach jamais poderia concordar. Assim, na sua cantata Christ lag in Todes Banden BWV 4, ele dá uma forçadinha e inicia o coral em Mi menor mesmo:
Porém o “Prêmio Schoenberg de Modernosidade” vai mesmo para Johann Rudolf Ahle (1625-1673), que ousou iniciar seu coral Es ist genug com uma escala de tons inteiros. Só Bach mesmo para tirar isto de letra, lá no final da cantata O Ewigkeit, du Donnerwort IIBWV 60:
Vencido o problema da harmonização, em muitos casos Bach também escrevia um acompanhamento mais elaborado para emoldurar todo o coral. O exemplo mais famoso desse procedimento é a melodia conhecida por “Jesus Alegria dos Homens”, que enriquece a melodia coral Werde munter, mein Gemüte de Johann Schop (1590-1667) no final da cantata Herz und Mund und Tat und Leben BWV 147. O mesmo coral também foi utilizado no final da cantata Ich armer Mensch, ich Sündenknecht BWV 55 e no meio da Paixão segundo São Mateus BWV 244 (o nº 40, Bin ich gleich von dir gewichen) com diferentes harmonizações:
Mas Bach não se restringia apenas às harmonizações: as melodias corais também eram usadas como base para criação de obras musicais mais complexas, como fantasias, variações, partitas, motetos e cantatas. Veja o caso do coral natalino de Lutero, Vom Himmel hoch, da komm’ ich her: Bach o tomou emprestado em três números do Oratório de Natal BWV 248 (ouça aqui o início do nº9), mas a melodia também originou vários prelúdios para órgão, como o Prelúdio em Dó Maior BWV 700, além das Variações Canônicas BWV 769:

Uma melodia coral também podia originar vários movimentos de uma cantata. A cantataEin feste Burg ist unser Gott BWV 80 tem quatro dos seus oito movimentos baseados no famoso coral de Lutero: além da harmonização tradicional ao final da cantata, ele emoldurou o coral com um acompanhamento também baseado na melodia (nº5) e criou um adorável dueto onde a soprano entoa uma versão floreada do hino. Mas o gênio de Bach aparece mesmo no movimento inicial, uma grande fantasia coral sobre a famosa melodia:
Para finalizar, a pérola das pérolas: o coro inicial da Paixão segundo São Mateus BWV 244, Kommt, ihr Töchter, escrito para dois coros e duas orquestras. Não, ele não é baseado em nenhuma melodia coral, porém no decorrer do movimento surge um terceiro coro cantando O Lamm Gottes, unschuldig de Nikolaus Decius (1485-1541). Ouça primeiro somente a melodia coral completa, acompanhada da harmonização de Bach BWV 401:

As sete frases da melodia coral estão espalhadas no meio do coro; aqui está uma montagem só com elas.
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